Alex Solnik relembra o dia em que foi preso e os 45 dias que passou numa prisão sendo interrogado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o maior torturador da ditadura militar brasileira
O lançamento sai pela editora Gearação e está em pré-venda, em formato brochura, com 160 páginas e pode ser encomendado pela Amazon ou diretamente na editora. A data oficial de lançamento é 10 de novembro.
O dia em que conheci Brilhante Ustra, de Alexandre Solnik (Ed. Geração, 160 p., 2024, impresso R$ 59,90, e-book R$ 38,90), relata a prisão do autor, no dia 4 de setembro de 1973, seu encarceramento por 45 dias e sua soltura, sem nenhuma explicação, depois desse período em que viveu os horrores de testemunhar violências e torturas contra presos políticos.
O Brasil vivia uma ditadura militar, com enfrentamento entre grupos de luta armada e o governo, que recorreu à repressão, inclusive por grupos clandestinos, prisões ilegais, tortura e morte de pessoas, muitas delas inocentes.
Foi o caso de Alexandre Solnik: foi confundido com um militante de um desses grupos e preso. Ele relata sua rotina na prisão, em um diário, dia após dia. Fala de sua convivência com um colega de cela que é barbaramente torturado, quase todos os dias. Descreve seus medos, terrores e sensações. Relembra fatos de sua vida e dos membros de sua família, imigrantes ucranianos.
O relato é muito pungente. Não obstante toda a violência, há pequenos respiros no texto, entremeado por brevíssimos e inusitados trechos de humor, digressões e poesia. Essa última lhe empresta beleza única, sobretudo quando é amarga, triste ou desesperada. Já as digressões são marcantes e, entretanto, não abandonam a narrativa corrente, ou seja, são espaços encontrados que podem fazer uma curva ou outra, sem nunca se desviar do caminho principal.
O relato em primeira pessoa dá uma vida extraordinária ao livro, mesmo quando os fatos não são vividos pelo narrador, mas por seu companheiro de cela. Engana-se quem espera uma narrativa linear. Ela ganha tons de diário jornalístico quando da leitura dos fatos ocorridos no Chile – que viveu um golpe enquanto Solnik estava preso – acompanhados pelos jornais com os quais a mãe inteligentemente embrulhava as refeições.
Há também os momentos de diálogo com quem lê, um convite a participar mais diretamente do livro; se toda a narrativa é construída como quem está compartilhando diretamente a sua experiência, esse trecho em especial nos “puxa” para dentro da história, usando a forma para nos levar a experimentar, de maneira profunda e comovente, o conteúdo.
As cenas de tortura do companheiro de cela são o auge da bestialidade. Nessa parte, o relato, muito real, tem um final extremamente eloquente, como se a pessoa torturada não fosse ninguém, nada. Impressiona também a descrição psicológica dos carcereiros e torturadores. A narrativa consegue levar o leitor para os porões da ditadura. Os torturadores, por sua vez, não são tratados como monstros. Como escreveu o Cardeal om Evaristo Arns, no prefácio de Brasil nunca mais, o torturador pode ser aquele que passa a mão na cabeça do filho do vizinho na rua. Isso dá um caráter humano às entranhas sombrias que podem habitar uma pessoa imbuída de um poder quase absoluto sobre a outra.
Por isso, é fundamental que tenhamos atenção ininterrupta e completa sobre os meandros da natureza humana e sobre como ela pode se manifestar em sua forma mais infame quando o contexto o permite. O livro é muito bem-vindo para que essa lembrança seja uma cicatriz visível e latente em nossa memória.
Entrevista com Alex Solnik
– Você foi preso em 1973, acusado pela repressão militar de ser o “hippie da Ação Popular”, a AP, um grupo de luta armada, e mantido na prisão, sem culpa, por 45 dias. Por que demorou 50 anos para escrever a respeito?
– É claro que eu tentei escrever a história várias vezes, mas sempre parava no meio, insatisfeito, sempre achando que faltava alguma coisa, eu não conseguia traduzir em palavras o que tinha acontecido com a força necessária, como se estivesse ali no X-5 (a cela na prisão), quer dizer, o enredo era maior do que eu, eu ora escrevia como se escreve, ora como se fala, até descobrir que o caminho era escrever como se pensa e eu voltei ao X-5 em maio deste ano e reconstituí meus pensamentos da época, dia por dia.
– Por que você acha que foi preso?
– Quando a irmã guerrilheira de um amigo meu foi presa, ele, que não era, começou a ser seguido e como ele me visitava frequentemente, minha casa passou a ser um alvo.
– O que você fazia na época?
– Eu estudava Cinema na Escola de Comunicações da USP e era freelancer na Editora Abril, redigindo fascículos que eram a coqueluche da época, como Mitologia, Conhecer e muitos outros. Estudante da USP, jornalista freelancer, ucraniano, cabeludo e judeu era para a repressão o perfil de um subversivo.
– O que você viu dentro da prisão?
– Aquilo era um filme de terror vinte e quatro horas por dia. Nunca imaginei que pudessem existir pessoas como aquelas, dispostas a torturar outras, assistir ao sofrimento imposto por quatro ou cinco trogloditas ao mesmo tempo. Nunca era o torturador e a vítima. Eram sempre muitos batendo, gritando e dando choques num ser humano, que está nu, amarrado e encapuzado. Eu ouvia os gritos dia e noite, sempre abafados por um rádio com volume mais alto que os gritos tocando boleros.
– Como foi conviver com essas lembranças por meio século exatamente?
– Eu me cobrava muito por não conseguir escrever a maior reportagem da minha vida, mas a realidade é que o episódio abriu as portas do futuro para mim, aí eu de fato comecei a trabalhar em redações, a começar do jornal “ex-” (assim mesmo, em letras minúsculas), um dos jornais da chamada imprensa nanica, onde conheci os mestres do ofício, que tinham fundado a revista “Realidade”: Hamilton Almeida Filho, Mylton Severiano da Silva, Sérgio de Souza, Paulo Patarra e Narciso Kalili.
– Como é escutar gritos de pessoas sendo torturadas e pensar que seria o próximo?
Veja que coisa curiosa. Eu nunca fui um cara valentão. Nunca chamei ninguém pra briga. Fugia delas. Era medroso. Mas naquela situação eu nunca senti medo de verdade, nunca fiquei nervoso, ou suando frio, essas coisas, eu me sentia como num avião: não posso fazer nada, estou nas mãos do piloto.
– Você teve medo de morrer?
Eu não pensava nisso, procurava pensar na minha namorada e no que faria depois de sair, tive mais medo de nunca mais sair dali do que morrer.
– Quando foi que você descobriu que um de seus algozes era o capitão Carlos Alberto Brilhante Ustra, o homem que era o terror da presa política Dilma Rousseff e foi idolatrado pelo capitão e presidente Bolsonaro?
Logo no primeiro dia. Foi ele que me conduziu à cela.
– Como era ele quando você foi preso?
Não era assustador como outros torturadores, tinha aquela aura de chefe, falava baixo, sem ameaças, com ar superior, tanto eu não tive medo dele que foi o primeiro meganha com quem tomei a iniciativa de conversar. E ele dialogou comigo sem encostar a mão em mim.
– Sua mãe, quando descobriu onde você estava, te levava comida embrulhada em folhas do jornal do dia. Era sua única comunicação com o mundo lá fora?
Veja que loucura. Naquele ambiente em que os nossos sequestradores faziam de tudo para não sabermos o que acontecia lá fora, o carcereiro não percebeu que eu e meu companheiro de cela líamos jornal todos os dias, escondidos no banheiro. Estávamos mais bem informados do que ele.
– Você não tinha caneta e papel em sua cela, mas “escreveu”, mentalmente, vários poemas. Quando foi libertado chegou em casa e imediatamente passou tudo para o papel. O que foi feito desses poemas?
Enquanto O.R., meu companheiro de cela, era torturado, dia sim, dia não, eu ficava sozinho na cela, e então para não ficar louco, para não pensar no que podia acontecer comigo, eu me distraía fazendo poemas, fazia um por dia, fazia e repetia mentalmente o dia todo, no dia seguinte fazia outro e repetia os dois e assim por diante. Fiz 45 poemas. E um dia fiz um recital na cela, quando recebemos vários presos. Eu reuni os poemas num livrinho chamado “Toda mudez será castigada”, na capa tinha gravura de uma tortura medieval. Imprimi numa gráfica de garagem da Bela Vista. E saí vendendo em bares, restaurantes. O único exemplar que eu tinha, sumiu. Talvez alguém tenha guardado. Também montei três recitais no Teatro de Arena. Eu recitando, minha amiga Solange Arruda dançando e um músico acompanhando. Todos viajando de LSD.
– Você narra sua história dia por dia, e vai entremeando o texto com lembranças de sua família na Ucrânia, na antiga União Soviética e no Brasil. Essa exposição tem grande poder de síntese ao contar a história de uma família de imigrantes que fugiu do comunismo.
– Eu e minha família fugimos de uma ditadura e caímos em outra. Sou contra todas as ditaduras. Nenhum jornalista pode ser a favor. Porque as ditaduras calam jornalistas. E matam.
Sobre Alex Solnik
Alex Solnik nasceu em Drohobytch, Ucrânia, em 1949. Chegou ao Brasil em 1958. Jornalista profissional desde 1974. Assinou centenas de reportagens nos principais jornais e revistas do país e escreveu vários livros, dentre os quais “O Cofre do Adhemar”, “A última batalha de Napoleão”, “A ilha socialista de D. Pedro II” e a peça de teatro “O casamento do Pau-Brasil com a foice e o martelo”.